segunda-feira, 1 de março de 2010

Obssessão...

Vou falar sobre um assunto que não tem muito a ver com altas habilidades. Não diretamente. Uma das características das pessoas com altas habilidades é uma obssessão com as coisas que gostam, e lhes interessam. Essa obssessão pode ter curta duração, as vezes perdemos o interesse rapidamente. No entanto, se achamos algo que gostamos, de verdade, é difícil não se dedicar horas a fio à coisas que outras pessoas acham uma bobagem, ou prestamos atenção a detalhes que outros vêem como inúteis.

Eu sou um pouco obcecada com culinária. E não só cozinhar, eu adoro ler livros de Chefs que gosto, livros de molhos e de ingredientes, histórias de cozinhas profissionais, sou capaz de pesquisar durante horas uma receita na qual estou interessada, para saber sua origem, suas variações, quais os ingredientes em comum destas variações, quais os ingredientes variantes que funcionariam melhor de acordo com minha (curta) experiência.

Eu fiz um curso profissionalizante de culinária, que não terminei (mas isso é uma outra história). E neste curso eu convivi com um grupo de pessoas, que possivelmente foi o grupo com o qual mais me identifiquei em minha vida. Eu já havia lido sobre pessoas que escolhem trabalhar profissionalmente em cozinhas, o relato que mais me chama atenção até hoje é o do Chef Anthony Bourdain, no livro Cozinha Confidencial (que recomendo muito, mesmo se você não tenha tanto interesse em culinária). Tony descreve as brigadas (o nome do grupo de cozinheiros de uma cozinha profissional) com as quais trabalhou como um bando de desajustados com tendências criminosas, que fumam e xingam demais e uma inclinação para o alcoolismo. São pessoas que não se dão bem com a vida normal de escritório, com o horário de uma pessoa normal. Quem trabalha em uma cozinha profissional fica em pé no mínimo dez horas por dia, em um ambiente muito quente, com as mesmas pessoas, tem horários malucos, geralmente chegam em casa de madrugada, se sentem mais a vontade do que o normal na presença de facas e, claro, são obssessivas em relação a seu ofício.

Descobri que algumas destas coisas são verdade. As pessoas com as quais convivi durante este curso já haviam, em sua maioria, trabalhado em cozinhas profissionais anteriormente. E sim, nosso grupo era bem desajustado e todos obcecados com cozinha. E eu adorava isto. Ficamos muito unidos durante o curso, o que era uma coisa que desde o início era frisada pelos professores. Vocês tem que se conhecer bem e aprender a confiar uns nos outros, porque vão passar a maior parte de sua vida consciente (pelo menos nos próximos meses) com estas pessoas em um ambiente fechado, quente, desconfortável, e COM VÁRIOS OBJETOS PONTIAGUDOS. Era necessário um nível de confiança alto, porque as preparações dependiam de todos, e muita comunicação, porque não adianta nada sua carne estar pronta se você não avisou ao saucier (a pessoa que lida com os molhos) que você estava preparando algo que precisava do molho dele, aí tudo desanda.

Uma outra coisa da qual eu já havia ouvido falar, mas não sabia que era levada tão a sério é a disciplina envolvida na cozinha profissional. É uma réplica do exército. Você tem que chegar as OITO HORAS EM PONTO. Mentira, você tem que chegar antes, porque tem que colocar o uniforme, e aí você tem que estar pronta as OITO HORAS EM PONTO. E impecável. Os homens tiveram que cortar os cabelos bem curtos (e se as mulheres pudessem fazer isto, melhor.), tiveram que tirar suas barbas, todos tinham que ter as unhas rentes, e nada de esmalte. As mulheres não podiam usar brincos, colares, anéis, maquiagem, nada que pudesse interferir na comida (aparentemente ter uma argola nadando na água do arroz não era desejável). E o uniforme tinha que estar LIMPO. As meias tinham que ser BRANCAS. O negócio era tão sério, que as vezes os professores passavam um algodão no rosto dos homens, se algo ficasse, a barba não estava suficientemente rente. Outra vez a supervisora foi na nossa sala e deu um esporro fantástico em alguém que não estava usando meias brancas (pode ter sido eu, prefiro não lembrar).

Claro que eu levava esporros incríveis, e variados. Meu relógio biológico veio com defeito de fábrica (também assunto para oooutro post...), portanto chegar as 7:45 e estar pronta às 8:00 era um desafio constante. Eu invariavelmente chegava (quando tinha sorte) cinco minutos atrasada, o que era motivo para que meu professor parasse o que ele estava fazendo, me olhasse de cima em baixo enquanto eu entrava na sala, e me desse um sermão sobre pontualidade que já estava ficando repetitivo. Também tinha as vezes nas quais eu trocava sem querer o uniforme que deveria levar, e levava o sujo. Aí eu entrava na sala com um avental coberto de molho e com um aroma de peixe (misteriosamente, mesmo que a preparação do dia anterior não envolvesse peixe), então ele me dava o sermão de como é necessária uma boa apresentação na cozinha, etc. Ou então, eu faltava à aula, o que era inconcebível, só eram permitidas no máximo três faltas em cada módulo. Neste caso o bicho pegava mesmo, minha seriedade em relação ao curso era questionada, minha fidelidade aos meus colegas, minha posição filosófica frente à vida! Minha explicação envolvia um grau variado de desculpas, mas na verdade, e claro que eu nunca admitiria isto senão seria excomungada, a explicação era mais simples, eu dormia normalmente as 4:00 da madrugada e acordava as 7:00, simplesmente tinha dia que eu não aguentava acordar.

Uma das situações que eu achei mais legal, e que demonstra um pouco da falta de juízo comum (e sim, não adianta falar que é generalização, quem trabalha neste meio tem uma falta de juízo inata) a quem trabalha, ou mesmo tem paixão por cozinha, foi um dos cursos extras ministrados durante o curso de cozinha. Ofereceram para minha turma uma aula de enologia, de uma ou duas semanas, não lembro bem, no período da tarde. O professor trazia três ou quatro vinhos para degustarmos, e fazia as observações, nos dava uma folha que trazia várias características de um vinho e nos ajudava a descobrir quais cabiam nos vinhos específicos. A degustação era de no máximo meia taça, e quem quisesse não precisava engolir o vinho, como é de praxe, se quiséssemos poderiamos cuspir o vinho em um recipiente próprio. Desnecessário dizer que nem uma gota foi jamais depositada em tal recipiente. Inclusive, se sobrasse qualquer vestígio de vinho em qualquer garrafa fazíamos questão de dividir até o fim. Muitas vezes íamos a aula sem ter almoçado ou ter comido qualquer coisa durante o dia (bem, eu pelo menos tinha costume de fazer isso, eu não tinha muita fome, acho que o aroma da comida me satisfazia), e partíamos para a degustação. Óbvio que saímos algumas vezes da aula de enologia de pilequinho. E qual nossa próxima tarefa? Ir mexer com FACAS, claro. Por que não? Qual o perigo de dez pessoas embriagadas em um mesmo ambiente, todas armadas com três ou mais facas?

Fiz amigos neste curso, alguns dos quais nunca vou me esquecer, e que mesmo não mantendo contato frequente, considero até hoje e acho que até sempre. Os com quem eu era mais próxima, eu via neles ( e em mim mesma as vezes) algumas características descritas por Bourdain: o cigarro, grande companheiro nos intervalos, alguns eram até mesmo inventados para que pudessemos sair e fumar; o álcool, eu passei a conhecer por nome os garçons do Mercado Central de BH, já que muitas vezes só saímos de lá com as portas fechando; até mesmo as tendências criminosas (bem leves, mas estavam lá), sobre as quais não vou me estender, porque, bem, não vem ao caso hehehe... Mas enfim, acho que o que mais nos unia era realmente a obessão por cozinhar e comer bem, era aquele sentimento de confidência, de que quem de fora chegasse no meio de uma conversa animada sobre qual o melhor vinho iria melhor com uma lagosta a beurre blanc, ia ficar coçando a cabeça sem entender o motivo de tanto entusiasmo.

Esse post enorme (pra variar), foi na verdade para falar de um livro que estou relendo. O livro chama-se Calor, o autor é o Bill Buford. O subtítulo do livro é meio auto-explicativo: "Aventuras de um cozinheiro amador como escravo da cozinha de um restaurante famoso, fazedor de macarrão e aprendiz de açougueiro na Toscana". Lindo, não é? É o seguinte, Buford é um escritor, que queria fazer uma reportagem sobre Mario Batali (um Chef americano bem bacana também), só que ele queria fazer uma reportagem 'a fundo', como ele sempre gostou de cozinha, qual a melhor maneira de fazer tal reportagem? Ir, com mais de 40 anos, trabalhar de graça na cozinha de Batali, lógico. Ele não tinha experiência nenhuma em uma cozinha profissional, o que claro, é o máximo e provocou a ele várias humilhações. Ele ficou lá um ano, passou por várias praças. O restaurante era de culinária italiana. Buford ficou, como só um apaixonado por cozinha, obcecado pela cozinha italiana, e por mais experiência que tivesse adquirido no Babbo (o nome do restaurante), não era o suficiente para ele. O próximo passo? Ir para a Itália aprender a fazer macarrão, óbvio.

Um conceito que eu adoro, e que é bem trabalhado no livro é o de 'escravo de cozinha'. Isto é uma prática comum entre Chefs, e significa basicamente que você vai trabalhar de graça, muitas vezes fazendo o trabalho de um chipanzé, tipo ficar várias semanas descascando e cortando batatas e cenouras, cumprindo um horário normal do restaurante, que na maioria das vezes é superior a 60 horas semanais, para poder aprender tudo que você puder naquela cozinha. Mario Batali fez isso, e foi nele em quem Buford se inspirou. Batali pegou suas coisas, isto no final dos anos 80, e se mandou para a Itália com um pouco de dinheiro que havia juntado (juntar dinheiro é essencial para esta prática, lembre-se, você está trabalhando de GRAÇA), e foi para Porreta Terme, uma cidadezinha perto de Bolonha, na Emilia-Romagna, trabalhar em um pequeno restaurante, para aprender como fazer comida italiana de verdade, em troca de comida e um lugar para dormir (muitas vezes é só em troca de comida mesmo). Isto é tipo meu sonho, a única parte da equação que falta é o dinheiro salvo anteriormente.

Depois que Buford foi para a mesma cidade que Batali, e aprendeu a fazer massa com una vera italiana, ele voltou ao Babbo. Mas não antes de adquirir uma obssessão (típica, como já estabelecido) sobre QUANDO o ovo foi incorporado à receita do macarrão. Este tipo de obssessão ilustra bem o que eu havia referido sobre pessoas com altas habilidades. É uma questão vista como inútil para a maioria das pessoas, não ia mudar absolutamente nada na vida de Buford, ele iria ter de recorrer a ferramentas inusitadas e gastar um número bem grande de horas para satisfazer sua curiosidade, a maioria das pessoas normais veria isto como loucura, o próprio Buford admitiu isto, mas ele não conseguia prosseguir com sua vida enquanto não respondesse tal questão.

Depois da obssessão com o ovo resolvida, hora de arrumar uma nova. Aí ele se interessou profundamente sobre carne. Qual a melhor maneira de se aprender tudo sobre carne? Ir para a Toscana para ser escravo do açougueiro mais famoso do mundo (sim, isto existe, e o nome do ser-humano é Dario Cecchini). Bem, mas aí eu já vou contar o livro inteiro, mais do que já contei. E se você teve paciência para ler até aqui, parabéns, e desculpe o entusiasmo. Mas o tema do post é esse mesmo...

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